O estudo “TIC Kids Online” realizado pela Timelens, empresa de tecnologia e inteligência de dados para negócios, mostra que, atualmente, 83% dos jovens possuem perfis em redes sociais. E o primeiro acesso à internet é cada vez mais cedo: em 2022, 22,1% das crianças e adolescentes brasileiros acessaram a internet pela primeira vez com até 6 anos de idade. Esse cenário tem levado pais a buscar mais controle sobre o consumo digital, resultando no aumento de 145% da procura por aplicativos de monitoramento, sendo o bloqueio de conteúdos a principal medida, adotada em 57% dos casos. No entanto, 70% das crianças já sabem ajustar as configurações de privacidade, aumentando o debate sobre autonomia e segurança on-line.
E a série “Adolescência”, recém lançada pela Netflix e que ficou quase um mês em primeiro lugar entre as mais assistidas da plataforma em 71 países (chegando a quase 100 milhões de visualizações), além de levantar tal questão, também traz mais dois alertas importantíssimos: social e familiar.
De acordo com Nátali Antunes, psicóloga clínica pediátrica do Vera Cruz Hospital, em Campinas-SP, a faixa etária traz uma vulnerabilidade que pode ser originada de diversas esferas. Portanto, a atenção de mães, pais e responsáveis precisa ser redobrada. “Crianças e adolescentes estão em processo ávido de construção de identidade, desenvolvimento nos aspectos de autonomia, busca por pertencimento e adaptação às demandas sociais e escolares. Os desafios incluem conflitos internos relacionados a inseguranças, vivências de frustrações, mudanças corporais que levam a comparações sociais e, algumas vezes, a cobranças por desempenho. E, na era digital, enfrentam o desafio de lidar excessivamente com a exposição às tecnologias que trazem impactos no modo como se relacionam consigo mesmos e com o outro”, explica.
Os alertas familiares, na visão da especialista, podem ser sutis e silenciosos. Além da disponibilidade emocional, mães, pais e responsáveis devem cultivar uma comunicação que vá além de questões práticas e criar um ambiente seguro para que crianças e adolescentes possam expressar suas vivências e conflitos. “A série retrata o sinal do isolamento e distanciamento do núcleo familiar. Muitas vezes, sinais de sofrimento não são percebidos ou são minimizados por falhas no estabelecimento de conexão e intimidade. A dificuldade em acessar o universo dos jovens é sentida por muitos responsáveis, e pode ser marcada por períodos de silêncio ou mesmo falha na compreensão da linguagem deles”.
O alerta social fica por conta de cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes e não negligenciar sinais de sofrimento. Quando há invisibilidade do sofrimento, os sintomas são tratados como “drama”, “fase” e não se oferece o suporte necessário para atravessar os desafios da adolescência. “Há, ainda, um alerta bastante relevante no que diz respeito ao uso não supervisionado de redes sociais em adolescentes que ainda estão em processo de construção de valores. É importante, e necessário, o alinhamento entre sistema educacional e políticas públicas quanto aos impactos das pressões sociais e de mídias digitais que os jovens enfrentam hoje e ao suporte que estão recebendo”, adiciona.
Já a tecnologia, especialmente as redes sociais, aparecem como um instrumento altamente perigoso na vida dos adolescentes. A série revela como o uso não monitorado pode agravar situações de isolamento, dependência emocional, distorções de autoimagem, comparações nocivas, cyberbullying e exposição a conteúdos inadequados. “O alerta concentra-se na necessidade de uso equilibrado e supervisionado de dispositivos digitais, diálogo constante sobre riscos e limites saudáveis no uso das tecnologias”.
A especialista ainda responde outras 12 questões importantes sobre o tema e que podem ajudar muito nesses cuidados:
1. De forma geral, quando é hora de mães, pais e/ou responsáveis procurarem acompanhamento especializado com profissional da psicologia para uma criança?
“Os indicativos incluem mudanças significativas de comportamento ou regressão no desenvolvimento, dificuldades persistentes no sono ou na alimentação, crises de choro frequentes, medos excessivos, dificuldades de aprendizagem ou prejuízos na interação social. Existem também situações especiais que demandam suporte emocional, como separação dos pais, luto, adoecimento ou mudanças bruscas na dinâmica familiar”.
2. Que tipos de comportamentos podem ser originados do bullying digital?
“O bullying digital pode incitar comportamentos de violência, queda da autoestima, sintomas de ansiedade e depressão, comportamento de evitação de grupos sociais, automutilação e, em casos extremos, pensamentos suicidas. Como se trata de uma forma de violência que invade até mesmo o espaço do lar, comportamentos de irritabilidade e agressividade podem ser sentidos de forma mais frequente e intensos. A diferença do bullying ocorrido no meio digital está na dificuldade de o agressor conceber e integrar que há alguém do outro lado”.
3. E do bullying presencial?
“O bullying presencial acarreta em impactos socioemocionais, podendo se observar retraimento social, aparecimento de medos e fobias sociais, dificuldades na expressividade, queda no rendimento escolar, mudanças de humor e sentimento de desvalorização. Em ambos os casos, é essencial que a criança ou adolescente se sinta acolhido e protegido para poder se expressar sobre o que está vivendo e receber o suporte emocional necessário”.
4. Como deve ser feito o monitoramento do uso de redes sociais por mães, pais e/ou responsáveis?
“O monitoramento deve incluir recursos técnicos (como uso de aplicativos ou controle de senhas) e também afetivos, que levam à conexão real e à intimidade. Os responsáveis precisam estar presentes e disponíveis para conversas sobre o que a criança ou adolescente assiste e consome on-line. A criação de regras (tempo e momentos de não utilização, por exemplo, é necessária), assim como a oferta de alternativas fora do mundo digital. O foco deve estar na construção de uma relação de confiança em que limites funcionem como contornos saudáveis para o desenvolvimento caminhar”.
5. Até qual idade as redes sociais não são recomendadas a crianças e adolescentes?
“Pesquisas recentes, como do psicólogo e autor Jonathan Haidt no livro ‘Geração Ansiosa’, apontam que o ideal seria postergar o acesso a redes sociais até os 16 anos. Ele defende que o uso precoce está diretamente relacionado ao aumento de transtornos de ansiedade, depressão e dificuldades de socialização entre adolescentes, especialmente meninas, e explica que a adolescência foi “reprogramada” nos últimos anos: deixou de ser vivida majoritariamente em experiências presenciais para acontecer, em grande parte, no ambiente digital, e tal fato tem impactado negativamente o desenvolvimento emocional dos jovens. Pediatras e especialistas na área de saúde mental concordam: o contato face a face é insubstituível no desenvolvimento humano, pois é nesse tipo de interação que as crianças aprendem a se regular emocionalmente, desenvolver empatia, interpretar expressões e encontrar pertencimento real. Nas redes sociais, o que predomina é a comparação constante, o julgamento e a construção de uma imagem distorcida, o que pode fragilizar profundamente a autoestima e a formação da identidade na adolescência – período de alta vulnerabilidade no desenvolvimento humano”.
6. De que maneira a série aborda a pressão social, a autoestima, a imagem corporal as questões de identidade, sexualidade, autodescoberta e a busca por aceitação entre os jovens? Isso pode ser um reflexo da realidade?
“A série retrata de forma realística e sensível as pressões sociais vivenciadas pelos adolescentes no ambiente escolar e nas redes. A necessidade de aceitação pelo outro, o desejo de pertencimento e inclusão, a comparação constante e a busca por validação externa são temas presentes. Essas cobranças afetam diretamente a autoestima e a imagem corporal dos jovens, especialmente quando se sentem fora de um padrão socialmente desejado.
A adolescência é conhecida por um momento do ciclo vital marcado por intensas transformações físicas, emocionais e sociais. É frequente que jovens experimentem dúvidas sobre quem realmente são, com quem se identificam e como se posicionam no mundo. A série representa esse processo de busca e descoberta da identidade, dos aspectos da sexualidade, dos impactos de pertencimento a grupos que acompanham inseguranças e conflitos em meio a uma era predominantemente digital”.
7. Qual a importância da amizade na adolescência, como mostrado na série, e como isso impacta o desenvolvimento emocional dos jovens?
“A adolescência caracteriza-se por um momento de busca de identificações e aprovação por pares e grupos, sendo as relações de amizade uma das principais fontes de apoio. É nessa relação que o jovem se sente compreendido, compartilhando vivências e criando vínculos que ajudam na construção da identidade. Estabelecer amizades saudáveis favorece o desenvolvimento socioemocional, a autoconfiança e a capacidade de resolução de conflitos. A série retrata muito bem como essas relações podem ser tanto protetivas quanto fonte de intenso sofrimento, dependendo da qualidade dos vínculos estabelecidos”.
8. Quais são as implicações psicológicas das escolhas impulsivas que muitos dos personagens fazem ao longo da série? Isso é característico do comportamento adolescente?
“O pensamento impulsivo é uma das características que permeiam o período da adolescência. Isso ocorre porque áreas cerebrais ainda estão em desenvolvimento, especialmente as áreas responsáveis pelo controle dos impulsos e tomada de decisões. As escolhas impulsivas podem trazer consequências importantes, como conflitos, arrependimentos ou exposições desnecessárias. Trabalhar o autoconhecimento, os valores pessoais e oferecer espaços seguros para a expressão podem ajudar o adolescente a refletir sobre boas escolhas antes de agir. A série retrata também o padrão repetitivo familiar de falhas na autorregulação emocional, mostrando comportamentos de descontrole frente a situações de adversidades”.
9. A busca por propósito, futuro e sucesso, que muitos adolescentes enfrentam, pode trazer algum tipo de transtorno que afete relações interpessoais e leve até à sociopatia?
“A busca por um propósito pode ser considerada uma “pulsão de vida” manifesta pelo adolescente, funcionando de forma saudável como um senso de produtividade. No entanto, quando a pressão por sucesso se torna excessiva e associada a figuras representativas de desempenho perfeito, por exemplo, pode desencadear intenso sofrimento emocional, resultando em sintomas de ansiedade, depressão ou transtornos relacionados à autoimagem. A sociopatia envolve outras condições, como traços de personalidade persistentes e padrões de comportamento específicos, e não costuma ser desencadeada apenas por frustrações ou pressões sociais”.
10. Na tua opinião, o que significa a intensa negativa do jovem protagonista em ter cometido o crime quando, inclusive, ele assiste a si próprio em câmeras de segurança assassinando a menina?
“O posicionamento de negação do adolescente protagonista pode estar relacionado a um mecanismo de defesa psíquico diante de um trauma intenso ou uma dissociação da própria realidade, especialmente quando há sofrimento psíquico grave envolvido. Há indícios de que o adolescente não possua recursos emocionais para lidar com o peso da situação de culpa, de sentimentos de arrependimento ou da vergonha, e negar o ocorrido pode ser a única forma de continuar existindo diante de algo tão devastador”.
Conteúdo excelente e de extrema importância!!!👏👏👏👏🙏🏻🙏🏻🙏🏻🙏🏻